domingo, 27 de janeiro de 2013

Fui Pequena, Não Fui Serena - 2


     Eu não entendia bem, sabia que meu avô era pai do meu pai, e minha avó mãe da minha mãe.
Em termos adultos, meu avô materno suicidou-se deixando minha avó com dois filhos pequenos, sete anos depois ela foi morar com um homem que já tinha se casado duas vezes e tinha 5 filhos. Fui fruto de um incesto emocional? Meus pais foram criados como irmãos, ela o amava muito, ele tinha sido o único da vida dela, de fato ela deve ter errado, mulheres tendem a errar quando amam, mas ele foi um cretino. Ambos com dezoito; ela engravida, ele não assume, ela fica sozinha com uma filha para criar... Vem aquela frase do Figth Club '' Tem uma porção de coisas que não queremos saber sobre as pessoas que amamos.'' Se amavam desde os oito anos, achavam que se conheciam... Não, não se conheciam. Eu te amo é frase mais descartável da sociedade contemporânea, palavras são flertes, o que de fato se esconde por trás de nossas ágeis e burras palavras?
Com esse contexto apesar de meu pai não ter realmente me assumido eu sabia quem ele era, não me lembro  de fato quando me contaram quem era meu pai, talvez não queira mesmo lembrar, deve ter sido algo como :
 - Esse é seu pai Alice.
 - O que é um pai?
E todos devem ter ficado perdidos com minha pergunta, a primeira lembrança convicta é aos quatro anos, já sabia que era um pai, pai nos filmes, pai nos desenhos, e o pai da vida real? Um homem alto, bonito, com os olhos mais perdidos que eu já conheci, um vácuo emocional, como foi a infância dele? Não tive a oportunidade de perguntar, ele só apareceu na minha vida para destruir... Enfim, ele me levou para ver a mãe dele nesse dia, era meu pai, carne e osso, só voltei a vê-lo quando tinha seis anos, foi um esbarrão perto da empresa que ele trabalhava, aos seis anos o maior sonho de uma menina é um pai protetor, para ensinar andar de bicicleta, não necessariamente ensinar a andar de bicicleta, mas o papel masculino, cresci muito rápido, com cinco anos ninguém me pegava mais no colo, frustante, via os pais rodopiarem com suas filhas, malditos filmes, seres humanos ficam frustrados ao verem algo que não podem ter, muito mais do que se nunca tivessem descoberto a existência daquilo. Por isso repense, você amaria essa mulher se não a tivesse conhecido? Claro que não! Apego não é divino, você ama o que é conveniente, o que está perto, e se estiver perto demais te causa repulsa...Humanos, complexamente idiotas.
Ele prometeu que iria passar em casa no dia dos pais, devo ter ficado muito feliz porque uma semana antes me encontrava eufórica para comprar o presente... Crianças, que seres são esses? Os mesmos que fazem um dos seus abaixar a roupa e se humilhar compram presentes para alguém que não dá a mínima para eles. A ambiguidade humana assusta, principalmente machuca, a mesma espada que apunha-la, estanca o sangue evitando a morte, uma estrada sem saída, lá estava a menininha de seis anos sentada no portão de casa, onze da manhã no máximo, um dia cinza, ou foi tão triste que me lembro dele cinza, vi que algum autor escreveu que memórias podem trair, esqueci qual, são tantos... Estava cheia de esperança, o embrulho azul, um cortador de unha com minha foto, um desenho e uma carta. O que mais um pai poderia querer né? A lembrança temporal é inexata,  mas as horas passaram, a sensação de uma fome desesperada junto com lágrimas entaladas na garganta é uma memória viva, gritante, minha mãe chamou para entrar, sabia da decepção, outra criança teria chorado, não chorei, não ali; com todas as pessoas passando na rua, me vendo, anoiteceu, ele não apareceu, levantei com ar derrotado, engoli o choro e fui deitar.
Por que meu pai não me ama como o pai da televisão? Ou como o pai da minha amiguinha que vai buscar ela na escola todo dia? Dormia com minha mãe, meses depois ia ser mandada para o sofá.
Sabe, é fácil ser mulher, assim como é fácil ser mãe, o difícil é ser bom nisso. O mesmo para ser homem e pai.
Somos uma sucessão de erros intermináveis, réplicas do passado, prévias do futuro, por que assim? Quantos anos você acha que eu tenho agora?
Depois desse dia saltarei dois anos, oito anos, episódio dos meninos e do marido da babá já perpetuados, outra pergunta que me apavorou durante anos, por que tantos desastres sexuais ocorreram na minha infância? No comecinho achei que era meu corpo, cortei ele todo, hoje não sei mais, ou sei e não quero contar, mulher adora fazer isso, esconder detalhes importantes, até de si mesmas.
Meu pai casou-se pela segunda vez com uma mulher, antes disso morou com uma garota uns doze anos mais nova, lembrando que ele tinha no máximo vinte e seis anos até aí, trocou de esposa, uma bela loira de olhos azuis alguns anos mais velha, uma mulher doce, muito doce, não sei por qual motivo começou a me pegar a cada quinze dias para passar o final de semana na casa dele, foi repentino. Minha mãe nunca o afastou, ou disse coisas extremamente ruins sobre ele, queria que fossemos próximos, lembro bem das poucas ligações.
O paraíso parecia ter sido concedido a mim, minha madrasta tinha uma filha e um filho de idades parecidas, ótima cozinheira, bolos e pudins, tranças no cabelo, o paraíso infantil, não brigava com meus ''irmãos''. Era só alegria, estranho né? A relação com meu pai era estranha, nunca um abraço caloroso ao chegar do trabalho, e um sempre intenso no sofá antes de dormir. Brincava bastante com as crianças, apesar de ama-lo sua performance não me convencia, o olhar vazio, o sentimento perdido, uma proximidade doentia, corriqueira, corriqueira demais.
E o que dizer agora? Preparar o terreno? Você já deve ter ouvido histórias sobre abuso sexual por parte de familiares milhares de vezes, por isso digo, palavras são labirintos inacessíveis, juro, se elas pudessem exprimir a grandeza do que  tratam; os sentimentos humanos, eu te faria chorar como uma criança, palavras raramente despertam uma verdadeira empatia.
Adorávamos brincar de cabra-cega no quarto em que eu dormia sozinha, um quarto de hóspedes que me apoderava temporariamente, meu pai vestia uma máscara e brincava conosco, a mão na minha perna, pensei que ele ia dizer ''peguei''... E eu seria a cabra-cega, mas não, todos corriam no escuro, uma mão na minha coxa, segundos depois quase na minha virilha, ignorei por descartar tal possibilidade, no mesmo dia outras três investidas, meu modo alerta ativou, minha cabeça doía, não queria acreditar, o amor e o medo acabaram silenciando-me.
Outro final de semana, as mãos por debaixo do cobertor entrando dentro do shorts, fiquei paralisada, o grito entalado na garganta, tinha vergonha, não ousava olhar para ele, nem correr, humilhante, outra vez humilhante. Passei a evitar proximidade corporal com meu pai, trocava de cômodos com frequência, mas ele sempre dava um jeito, então eu congelava, nojo era a palavra certa, o maior nojo de quem sofre violência sexual é quando o corpo responde aos estímulos, você odeia aquilo, dói por dentro, e seu corpo sente algo, poderia ter contado, é claro que poderia, não consegui.
Tinha medo de perder as pessoas que amava, meus novos irmãos, minha madrasta, minha dignidade, sabia que era vergonhoso, pois eu tinha vergonha do que ocorreu com o marido da babá, parecia uma perseguição, um medo, um nojo. Depois do que começou acontecer na casa da babá eu tinha a impressão que todos olhavam para mim e me chamavam de suja dentro da casa dela.
O tempo passava, as caricias se intensificavam, tornei-me uma criança cada vez mais alerta, ansiosa, compulsiva, reativa, paranoica.  Comia demais, passei a ter insônia, medos excessivos, medos que logo se tornaram patológicos.
Todos os finais de semana meu pai fazia questão de buscar, o mundo se convencera de que ele era um pai presente,que me amava, '' amadureceu agora.'' Comecei a ter raiva daquele show de cinismo, ao mesmo tempo da raiva vinha a culpa, sentia-me cúmplice, responsável, odiava me olhar no espelho, era culpa do meu corpo, por que eu cresci tão rápido? Procurava incessantemente pela minha inocência, ela parecia ter escorridos pelas minhas pernas e desaparecido.
Na escola todos pareciam rir de mim, uma paranoia doentia, comecei a andar encurvada, não demorou para ganhar o apelido de Carrie, de Carrie, A Estranha...
Fico exausta toda vez que esse assunto entra em questão, se pudesse eu deitaria no seu peito agora e adormeceria. Algo dentro de mim grita, fico facilmente fragilizada, é como se estivessem constantemente me espancando, entende agora o motivo de ser fisicamente forte, e introspectiva?
 Eu não quero ser vadia,  preciso aprender a ser sozinha, essa carência é um buraco negro, nada consegue satisfaze-la. Algumas memórias podem ser extremamente arrasadoras, principalmente quando é possível sentir o cheiro, o gosto e a sensação do momento.
Memória viva :  Uma lembrança congelada, o passado transpondo-se no presente, uma alusão temporal.
Memórias vivas quase me custaram a sanidade,  hoje não causam mais danos significativos, no máximo uma sensação ruim...
Não fui a única vítima do meu pai, talvez a que ele foi mais longe, afinal eu estava em suas mãos, tinha controle sobre mim, era sua cria, um homem sem um pingo de empatia, mas como tudo na vida, nós não somos os únicos, por mais dolorosa que seja sua desgraça, alguém em qualquer lugar do mundo está sofrendo igual ou em maior proporção. Ele tinha um melhor amigo, tão sujo quanto, a garotinha melancólica vivia pelos cantos, paranoica, escutando conversas. As filhas da vizinha entraram no quintal, uma tinha doze e a outra no máximo oito... Vi a mão dele entrando na calcinha da garota mais velha, ela lhe deu um tapa no rosto, um tapa ardido, um que nunca tive coragem de dar, o homem riu, só riu, ironizando.
- Seu porco imundo.
- Vai contar para sua vó? Acha que ela vai acreditar em você?
O amigo dele ficava em um canto apenas observando, a menininha mais nova acuou-se. Papai, por que papai? Muitas mulheres arrastavam-se aos pés dele, por que uma criança? Por que sua filha? Há quem diga que o mundo é divido entre sádico e masoquistas, ninguém nasce masoquista, o sádico cria o masoquista para seu prazer. Quando as meninas saíram eles riram, um riso sádico, uma vontade imensa de levantar, espancá-los, incendia-los, purifica-los, por fim ama-los como se fossem homens bons. Dor não salva almas, eu não sabia disso.
Eu poderia ter perdoado meu pai, no fundo sei que poderia, quando passou a cometer tais atos contra mim já haviam me tirado a inocência infantil, não há nada mais lindo no mundo que a inocência infantil, o corpo velado contra a sexualidade destrutiva dos adultos, a sexualidade infantil é pura,  isso já me fora arrancado dois anos anos antes, no entanto, a crueldade, a líbido daquele homem sonhou mais alto, as feridas na alma não foram suficientes, era preciso ferir o corpo, mudar por completo a ordem dos fatos...
As investidas passaram a ser mais violentas, profundas, lá estava ele dentro do quarto às sete da manhã, período de férias escolares, os filhos da minha madrasta na casa do pai, ela trabalhando. Nunca houve um único pestanejar, uma única palavra, o olhar era a ameaça, a ordem final, seria vergonha do que fazia, ou puro desprezo pela minha pessoa?
Para uma criança empática e super alerta a ataques é fácil perceber o que se passa ao seu redor, descobrir o que as pessoas sentem, quando mentem, quando amam, quando se contradizem, o que vão fazer, é quase como ser vidente, isso sempre me deixou um passo à frente, até ser golpeada pelo meu pai, por mais que tentasse incansavelmente entendê-lo, desvenda-lo, não conseguia, só encontrava a posição corporal robótica, o olhar vazio, a expressão fechada, nem sério, nem sorridente. Um camelão social, se adaptava as pessoas ao seu redor, mas mantinha-se frio. Um alto poder de manipulação, um cinismo significativo, sabia que aquele homem poderia forjar qualquer sentimento que fosse, em algo nós éramos parecidos, ambos éramos cameleões sociais, com motivos diferentes claro, meu pai nunca quis ser aceito, não importava, só os seus objetivos importavam, só os seus desejos importavam. Eu me adaptava procurando amor e atenção,  fui uma criança tão idiota, continuo sendo idiota, a diferença é que agora sou idiota e louca.
Como posso dizer isso cruamente? Tirou o pênis para fora, tampou minha boca, penetrou. Não olhei para ele, não olhei para cena, fiquei olhando para porta, eu sempre fixava minha mente em um ponto qualquer nessas horas, uma fuga, seria insuportável olhar aquilo, queria cavar um buraco, me enterrar, sumir.
Quando um ser humano sofre tamanho stress o cérebro faz um sequestro emocional, a pessoa fica confusa sobre o que está sentindo, perde a dimensão de dor, não consigo definir a dor, como ela era, o quanto ela era, só sei que doía, por dentro, por fora, e também não sei separar a dor física e emocional do momento, fundiram-se. A partir daquele dia além do buraco no peito, foi aberto um buraco entre minhas pernas, a perda emocional daquela película doeria ainda por muitos anos, ainda dói, de fato isso ainda dói.
      Perdi algo que nem sabia que tinha.
      Tenho nove anos agora
     Os adultos dividem as mulheres entre putas e santas.
      Minha avó disse que quem faz sexo antes do casamento vai para o inferno.
    Ouvi minha mãe dizendo que a vizinha é uma puta porque faz sexo com várias pessoas.
    Santas são virgens.
    Eu não sou virgem, então eu sou uma puta?
    Sinto o líquido escorrendo, o líquido branco, mas quando olho não tem nada.
    A vizinha disse que o marido dela via coisa onde não tinha, era um louco, então eu sou louca?
                                     Meu nome é Alice 

sábado, 26 de janeiro de 2013

Fui Pequena, Não Fui Serena - 1



 O homem observava de longe sua companheira de academia, corria incansavelmente todos os dias, puxava pesos excessivos para uma garota, era praticante de artes marciais, um semblante sempre firme.
- Você é forte hein...
Tirou o fone do ouvido, diminuiu a velocidade da esteira, respirou fundo, o suor escorria pelo rosto, as bochechas avermelhadas, deu um breve sorriso.
- Um corpo forte para compensar uma mente frágil, debilitada, infantil. As mulheres tem inúmeros artifícios para suportarem a própria instabilidade emocional, vivem no ápice da loucura, vazias e insensatas, uma natureza densa, perigosa, cresci com um dom mórbido de absorver tudo a  minha volta, fui puro amor e empatia, sofria com a desgraça dos noticiários, repudiava crianças cruéis, tinha dó dos animais abandonados, abraçava as pessoas tristes, via as amigas da minha mãe chegarem bêbadas das festas, ouvia  conversas frustradas de corações partidos, aquelas mulheres partiam seus próprios corações e culpavam o mundo. Erros atrás de erros, equívocos atrás de equíocos, isso serve para os homens também, a humanidade em geral.
Desde pequena fui considerada triste, não ligava pois sabia que era outro equivoco, o que aquelas mulheres sabiam sobre ser feliz? O que a sociedade contemporânea sabe sobre ser feliz? Crianças assistem programas horríveis enquanto comem lanches e tomam refrigerantes, as mães acham isso feliz. Adolescentes bebem até álcool zulu e todos batem palmas, homens trabalham em lugares que odeiam para comprar merdas que não precisam, compram merdas para impressionar uma geração de mulheres frustradas que vão pisar neles, mulheres odeiam o que veem no espelho, mulheres boicotam sua própria felicidade quando vão para balada encher a cara e ser livre, destroem seus fígados,no outro dia querem ser bonitas e amadas, constroem uma cova para solidão, se enterram...
Não me olhe deste jeito, surpreso com meu tom machista, não sou machista muito menos feminista, de tanto observar preferi me ausentar, o mundo me cansou, ele e suas dores me contaminaram demais.
Minha mãe me amava, amava muito, mas era completamente cega, jovem demais, almejava um conto de fadas, mas construía um castelo de horrores, é como desejar viver em uma floresta e desmatar todas as árvores que encontrar pelo caminho.
Palavras, cheiros, sensações, lágrimas, sorrisos e gritos, eu os absorvia de forma eficiente, isso realmente não poderia ser bom para uma criança de sete anos, minha imaturidade me fazia acreditar que estava imune a maldade do mundo, ao desastre mental da sociedade, faltava o olhar desconfiado de um adulto para constatar o perigo eminente, crianças próximas demais da realidade dos adultos estão destinadas a se ferirem.
A falta de um papel masculino afeta sim, que se dane o que dizem as mulheres feministas, independentes ou misândricas, é fácil dizer isso quando se teve um papai ou um vovô em casa, um irmão mais velho que fosse, é como um vácuo para menina, foi um vácuo muito grande para mim, me apegava aos namorados da minha mãe, eles iam embora deixando o gosto amargo da perda, me apegava aos maridos das minhas babás, mas eles também não podiam suprir o meu desespero afetivo.  Até que um dia aquele senhor de quarenta e oito anos, de barbas e sorriso afável resolveu me dar atenção, passava horas brincando comigo, era meu ''tio'', e a babá ''tia'', descobri o gosto amargo de ser receptiva, o gosto amargo das pessoas, um câncer se instalou em mim, o abuso sexual, até hoje não arranjo palavras para descrever tal ação, a única coisa que me passa pela cabeça, é uma falta de empatia muito cruel por parte desses seres. Descobri algo crucial da vida humana, a nossa dor dói muito mais, cada um se ocupa das próprias feridas porque a dor é um fardo realmente pesado.
Recalquei aquilo dentro de mim , continuei vivendo, ainda viva, menos pura, menos equilibrada, mais esponja sentimental. Continuei sendo a garotinha esperançosa que senta no pátio da escola e espera
 ser amada por qualquer um, ia além dos limites da minha idade, surpreendente ou não, era uma ótima aluna, aprendi a ler primeiro que todos meus coleguinhas de classe, surgiu a paixão pela literatura, os livros eram tão bonitos, mágicos e bons, as histórias sempre terminavam felizes, a fantasia enfeitiçou-me, nascia então uma amante de livros em uma família que odiava livros. Sabe, é isso que desejo responder quando me perguntam como passei a me interessar por livros sem qualquer tipo de incentivo.

-  Eu passei a amar os livros porque eles eram o refúgio para meu ego machucado, dentro dos livros todas as crianças são amadas, as páginas são coloridas, o mal não prevalece, não deixa marcas, por alguma razão eu vi a realidade do mundo desde muito pequena, e não gostei do que vi, corri para os livros, gritei por socorro, eles me acolheram, hoje tenho pelo uns duzentos títulos na memória, só que continuo me deparando com a realidade.

Não digo nada disso, simplesmente minto, o grande mal das mulheres é evitarem o que sentem, evitarem o que querem,  se perdem em um mar de convicções que não são delas.
A ansiedade consagrou-se dentro da minha personalidade, crianças que sofrem abusos psicológicos ou físicos tornam-se hiper alertas para as emoções daqueles ao seu redor, uma vigilância constante contra qualquer ataque externo. É óbvio que não fazia ideia disso, minhas brincadeiras se baseavam em desgraças, alguém sempre morria, o homem sempre partia, filhos drogados, filhas grávidas, maldita geração televisiva, maldita geração que mistura crianças e adultos, jamais deveria ter visto Presença de Anita aos cinco anos, ou deixado de acreditar no papai noel aos quatro, minhas barbies eram bruxas suicidas.
Com frequência sentia inveja de outras crianças, irmãos mais velhos, pais que ameaçavam tirar a televisão caso não fizessem o dever, quando minha mãe chegava do trabalho costumava estar sentada na mesa.
- Me ajuda fazer a lição mãe?
- Você é inteligente, vai tirar dez sem minha ajuda.
Ela sempre exigiu que eu tivesse as melhores notas, uma vez fiquei de castigo por tirar oito, mas nunca me ajudou a fazer lição alguma. Queria que eu tivesse independência emocional para não ser machucada como ela, fez tudo errado, com toda certeza não é assim que se cria alguém forte, maldita independência, acordava sozinha, comia sozinha, ia para escola sozinha, primeiros resquícios de rebeldia, ser chata era o único jeito de ser notada no final de semana em que a cerveja e os homens da balada eram essenciais.
Cito idades, só que os fatos não estão exatamente cronológicos, as amigas da minha mãe tinham apenas filhos homens, garotos não menos problemáticos que eu, um odiava a escola, outro passava o dia na rua com garotos bem mais velhos, tornou-se drogado dez anos depois... Enfim, ele e mais uns quatro brincavam, os homens são mais próximos, mais acalentadores entre si, eles são os companheiros, sensíveis, meninas portam-se sensivelmente, mas desde pequenas escutam suas mães dizerem que os homens são maus, que o mundo é isso, que a amiga é vaca, a vizinha é falsa, tornamo-nos hostis, agressivas, o homem é ele mesmo desde pequeno, a garota é moldada, trauma ocasional.
Queria muito brincar com eles, vivia com a eterna sensação de rejeição, outras meninas se contentavam em xinga-los e irem brincar, eu não, queria ser querida, queria ser aceita, eram os únicos ali, insisti dia após dia para brincar, até que era boa para brincar com os meninos, gostava mais de aventura, não exigia casinha ou bonecas, maleável socialmente, me ame, me ame, eu quero um abraço, custe o que custar... Eu só quero fazer as pessoas sorrirem,  o inconsciente gritava, minhas memórias podem estar flertando.
- Deixamos você brincar desde que abaixe a roupa.
Que diabos! Como crianças de sete anos pensam nisso? Sexo na televisão, agarração no carnaval, erotização infantil, para quem conhece Freud sabe da sexualidade infantil, mas nada parecido com isso, crianças repetem o que veem. Indigno.
Xinguei eles no primeiro dia, voltei para minha casa, chorei por horas, chorei escondido pela primeira vez, aprendi reprimir minha fragilidade, o amor me tornava fraca, me humilhava, a cena se repetiu por mais duas semanas, até que cedi, abaixei minha roupa, brinquei em paz. No outro dia tive de abaixar mais, no terceiro dia desisti.
- Vou contar para sua mãe que você abaixou sua roupa, sua puta.
Comecei a chorar, fiz o que me mandaram, é minha primeira memória contra mim mesma, o primeiro dia em que senti um tremendo ódio de mim. Um ciclo vicioso assombrou as próximas semanas, em pouco tempo uma leva de meninos me olhavam enquanto obedecia ordens, amor, dor, ódio;sinônimos. Quando me cansei de verdade, disse não, contaram para minha mãe, levei uma surra tão grande, a maior da minha vida por parte dela, galos e roxos, estava tão triste, não tinha sido nada divertido, me pergunto até que ponto ela se perguntou sobre o que ouviu? Tinha terminado um relacionamento no mesmo dia, parte da dor dela era transferida para mim em cada golpe, invés de ódio, fiquei feliz, parecia cura-la, a dor dos golpes parecia aliviar a dor que a humilhação tinha me causado, estava criada ai uma masoquista em potencial, aprendi o que estava vendo, o que estava sentindo.
Dor alivia dor.
Amor machuca.
Homens são maus.
Mulheres são loucas.
Eu tenho oito anos agora...

                                                   E meu nome é Alice.