sábado, 26 de janeiro de 2013

Fui Pequena, Não Fui Serena - 1



 O homem observava de longe sua companheira de academia, corria incansavelmente todos os dias, puxava pesos excessivos para uma garota, era praticante de artes marciais, um semblante sempre firme.
- Você é forte hein...
Tirou o fone do ouvido, diminuiu a velocidade da esteira, respirou fundo, o suor escorria pelo rosto, as bochechas avermelhadas, deu um breve sorriso.
- Um corpo forte para compensar uma mente frágil, debilitada, infantil. As mulheres tem inúmeros artifícios para suportarem a própria instabilidade emocional, vivem no ápice da loucura, vazias e insensatas, uma natureza densa, perigosa, cresci com um dom mórbido de absorver tudo a  minha volta, fui puro amor e empatia, sofria com a desgraça dos noticiários, repudiava crianças cruéis, tinha dó dos animais abandonados, abraçava as pessoas tristes, via as amigas da minha mãe chegarem bêbadas das festas, ouvia  conversas frustradas de corações partidos, aquelas mulheres partiam seus próprios corações e culpavam o mundo. Erros atrás de erros, equívocos atrás de equíocos, isso serve para os homens também, a humanidade em geral.
Desde pequena fui considerada triste, não ligava pois sabia que era outro equivoco, o que aquelas mulheres sabiam sobre ser feliz? O que a sociedade contemporânea sabe sobre ser feliz? Crianças assistem programas horríveis enquanto comem lanches e tomam refrigerantes, as mães acham isso feliz. Adolescentes bebem até álcool zulu e todos batem palmas, homens trabalham em lugares que odeiam para comprar merdas que não precisam, compram merdas para impressionar uma geração de mulheres frustradas que vão pisar neles, mulheres odeiam o que veem no espelho, mulheres boicotam sua própria felicidade quando vão para balada encher a cara e ser livre, destroem seus fígados,no outro dia querem ser bonitas e amadas, constroem uma cova para solidão, se enterram...
Não me olhe deste jeito, surpreso com meu tom machista, não sou machista muito menos feminista, de tanto observar preferi me ausentar, o mundo me cansou, ele e suas dores me contaminaram demais.
Minha mãe me amava, amava muito, mas era completamente cega, jovem demais, almejava um conto de fadas, mas construía um castelo de horrores, é como desejar viver em uma floresta e desmatar todas as árvores que encontrar pelo caminho.
Palavras, cheiros, sensações, lágrimas, sorrisos e gritos, eu os absorvia de forma eficiente, isso realmente não poderia ser bom para uma criança de sete anos, minha imaturidade me fazia acreditar que estava imune a maldade do mundo, ao desastre mental da sociedade, faltava o olhar desconfiado de um adulto para constatar o perigo eminente, crianças próximas demais da realidade dos adultos estão destinadas a se ferirem.
A falta de um papel masculino afeta sim, que se dane o que dizem as mulheres feministas, independentes ou misândricas, é fácil dizer isso quando se teve um papai ou um vovô em casa, um irmão mais velho que fosse, é como um vácuo para menina, foi um vácuo muito grande para mim, me apegava aos namorados da minha mãe, eles iam embora deixando o gosto amargo da perda, me apegava aos maridos das minhas babás, mas eles também não podiam suprir o meu desespero afetivo.  Até que um dia aquele senhor de quarenta e oito anos, de barbas e sorriso afável resolveu me dar atenção, passava horas brincando comigo, era meu ''tio'', e a babá ''tia'', descobri o gosto amargo de ser receptiva, o gosto amargo das pessoas, um câncer se instalou em mim, o abuso sexual, até hoje não arranjo palavras para descrever tal ação, a única coisa que me passa pela cabeça, é uma falta de empatia muito cruel por parte desses seres. Descobri algo crucial da vida humana, a nossa dor dói muito mais, cada um se ocupa das próprias feridas porque a dor é um fardo realmente pesado.
Recalquei aquilo dentro de mim , continuei vivendo, ainda viva, menos pura, menos equilibrada, mais esponja sentimental. Continuei sendo a garotinha esperançosa que senta no pátio da escola e espera
 ser amada por qualquer um, ia além dos limites da minha idade, surpreendente ou não, era uma ótima aluna, aprendi a ler primeiro que todos meus coleguinhas de classe, surgiu a paixão pela literatura, os livros eram tão bonitos, mágicos e bons, as histórias sempre terminavam felizes, a fantasia enfeitiçou-me, nascia então uma amante de livros em uma família que odiava livros. Sabe, é isso que desejo responder quando me perguntam como passei a me interessar por livros sem qualquer tipo de incentivo.

-  Eu passei a amar os livros porque eles eram o refúgio para meu ego machucado, dentro dos livros todas as crianças são amadas, as páginas são coloridas, o mal não prevalece, não deixa marcas, por alguma razão eu vi a realidade do mundo desde muito pequena, e não gostei do que vi, corri para os livros, gritei por socorro, eles me acolheram, hoje tenho pelo uns duzentos títulos na memória, só que continuo me deparando com a realidade.

Não digo nada disso, simplesmente minto, o grande mal das mulheres é evitarem o que sentem, evitarem o que querem,  se perdem em um mar de convicções que não são delas.
A ansiedade consagrou-se dentro da minha personalidade, crianças que sofrem abusos psicológicos ou físicos tornam-se hiper alertas para as emoções daqueles ao seu redor, uma vigilância constante contra qualquer ataque externo. É óbvio que não fazia ideia disso, minhas brincadeiras se baseavam em desgraças, alguém sempre morria, o homem sempre partia, filhos drogados, filhas grávidas, maldita geração televisiva, maldita geração que mistura crianças e adultos, jamais deveria ter visto Presença de Anita aos cinco anos, ou deixado de acreditar no papai noel aos quatro, minhas barbies eram bruxas suicidas.
Com frequência sentia inveja de outras crianças, irmãos mais velhos, pais que ameaçavam tirar a televisão caso não fizessem o dever, quando minha mãe chegava do trabalho costumava estar sentada na mesa.
- Me ajuda fazer a lição mãe?
- Você é inteligente, vai tirar dez sem minha ajuda.
Ela sempre exigiu que eu tivesse as melhores notas, uma vez fiquei de castigo por tirar oito, mas nunca me ajudou a fazer lição alguma. Queria que eu tivesse independência emocional para não ser machucada como ela, fez tudo errado, com toda certeza não é assim que se cria alguém forte, maldita independência, acordava sozinha, comia sozinha, ia para escola sozinha, primeiros resquícios de rebeldia, ser chata era o único jeito de ser notada no final de semana em que a cerveja e os homens da balada eram essenciais.
Cito idades, só que os fatos não estão exatamente cronológicos, as amigas da minha mãe tinham apenas filhos homens, garotos não menos problemáticos que eu, um odiava a escola, outro passava o dia na rua com garotos bem mais velhos, tornou-se drogado dez anos depois... Enfim, ele e mais uns quatro brincavam, os homens são mais próximos, mais acalentadores entre si, eles são os companheiros, sensíveis, meninas portam-se sensivelmente, mas desde pequenas escutam suas mães dizerem que os homens são maus, que o mundo é isso, que a amiga é vaca, a vizinha é falsa, tornamo-nos hostis, agressivas, o homem é ele mesmo desde pequeno, a garota é moldada, trauma ocasional.
Queria muito brincar com eles, vivia com a eterna sensação de rejeição, outras meninas se contentavam em xinga-los e irem brincar, eu não, queria ser querida, queria ser aceita, eram os únicos ali, insisti dia após dia para brincar, até que era boa para brincar com os meninos, gostava mais de aventura, não exigia casinha ou bonecas, maleável socialmente, me ame, me ame, eu quero um abraço, custe o que custar... Eu só quero fazer as pessoas sorrirem,  o inconsciente gritava, minhas memórias podem estar flertando.
- Deixamos você brincar desde que abaixe a roupa.
Que diabos! Como crianças de sete anos pensam nisso? Sexo na televisão, agarração no carnaval, erotização infantil, para quem conhece Freud sabe da sexualidade infantil, mas nada parecido com isso, crianças repetem o que veem. Indigno.
Xinguei eles no primeiro dia, voltei para minha casa, chorei por horas, chorei escondido pela primeira vez, aprendi reprimir minha fragilidade, o amor me tornava fraca, me humilhava, a cena se repetiu por mais duas semanas, até que cedi, abaixei minha roupa, brinquei em paz. No outro dia tive de abaixar mais, no terceiro dia desisti.
- Vou contar para sua mãe que você abaixou sua roupa, sua puta.
Comecei a chorar, fiz o que me mandaram, é minha primeira memória contra mim mesma, o primeiro dia em que senti um tremendo ódio de mim. Um ciclo vicioso assombrou as próximas semanas, em pouco tempo uma leva de meninos me olhavam enquanto obedecia ordens, amor, dor, ódio;sinônimos. Quando me cansei de verdade, disse não, contaram para minha mãe, levei uma surra tão grande, a maior da minha vida por parte dela, galos e roxos, estava tão triste, não tinha sido nada divertido, me pergunto até que ponto ela se perguntou sobre o que ouviu? Tinha terminado um relacionamento no mesmo dia, parte da dor dela era transferida para mim em cada golpe, invés de ódio, fiquei feliz, parecia cura-la, a dor dos golpes parecia aliviar a dor que a humilhação tinha me causado, estava criada ai uma masoquista em potencial, aprendi o que estava vendo, o que estava sentindo.
Dor alivia dor.
Amor machuca.
Homens são maus.
Mulheres são loucas.
Eu tenho oito anos agora...

                                                   E meu nome é Alice.

Um comentário:

  1. Se podemos caracterizar assim uma infância má influenciada por abuso sexual e indecência, eu posso dizer que conheci alguém com uma infância "perfeita", de carinhos e familia perfeita que hoje, não é uma adulta exímia ou que foi/é/está feliz com tudo e consigo mesma.

    Eu espero muito que Alice seja feliz.

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